A fama proporcionada pelo filme Terra Vermelha, dirigido por Marco Bechis, mudou a vida do cacique Guarani-Kaiowá Ambrósio Vilhalva, 52 anos, morto a facadas ontem (2) em sua própria aldeia, a Guyraroká, que fica em Caarapó a 283 quilômetros de Campo Grande.
Depois de viajar o mundo para divulgar o filme em festivais e eventos, o cacique, conhecido por lutar pelo direito à terra, acabou se dissociando do estilo de vida indígena, segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
Além da fama dos 15 minutos, o uso compulsivo de bebida alcoólica agravou o conflito de Ambrósio, que vivia em uma relação poligâmica e era casado com três mulheres. Ele foi morto após uma suposta briga com o sogro, Ricardo Mendes Quevedo, 54, preso em flagrante pela Polícia Civil.
No mesmo dia da morte de Ambrósio e da detenção do acusado, ontem (2), o Cimi divulgou nota com três apontamentos para que a sociedade possa refletir e tentar compreender a morte de Ambrósio, assim como os últimos anos de vida dele.
De acordo com o conselho, o primeiro dos apontamentos é o fato de a identidade indígena na região ter sido perdida com relação às retomadas e expulsões de terras. Guyraroká é um território indígena retomado pelos Kaiowá, informa o Cimi.
Na década de 1990, pelo menos 30 famílias que viviam confinadas na reserva Teykue, em Caarapó, conseguiram ocupar 60 hectares de uma das fazendas. No entanto, foram expulsas e ficaram na beira da estrada por quatro anos até conseguirem voltar à área.
Os processos históricos de perdas de território e do confinamento em reservas, impostos aos Guaranis-Kaiowá, são o segundo apontamento do Cimi. Para o Conselho, estas experiências foram traumáticas e transformaram abruptamente os modos de vida dos indígenas, além de alterarem a qualidade e o sentido da vida deles.
Dessa forma, o uso compulsivo de bebidas alcoólicas e o ato do suicídio se proliferaram com força. Centenas de indígenas foram atingidas por essa ideia, acredita o Cimi. Para suportar as tentativas de disciplinamento por parte do Estado e do capital, embriagar-se ou se matar forjaram-se como saídas. E Ambrósio bebia muito, informa o texto.
O terceiro apontamento do Conselho é o fato de que Ambrósio vinha sendo alertado pela comunidade sobre os problemas que o uso compulsivo de bebidas alcoólicas traziam. De acordo com a comunidade, a liderança estava, cada vez mais, sendo hostil com os indígenas da aldeia.
Mas o comportamento agressivo de Ambrósio surgiu nos últimos tempos. Antes, ele era conhecido por ser um bom yvyraja (aprendiz e auxiliar) do pai, que era o ñanderu (rezador tradicional Kaiowá) da comunidade.
Atuação, fama e queda O líder indígena foi um dos protagonistas do filme Terra Vermelha, de 2008. O longa, de co-produção italiana e brasileira sobre a tragédia Kaiowá, foi bastante elogiado pela crítica e teve cinco indicações, entre elas, para o Festival de Veneza. A produção também teve duas premiações.
Para divulgar o filme, Ambrósio viajou bastante em agendas extensas, informa o Cimi. Depois da exposição e da circulação do Kaiowá em festivais, espaços políticos e outras esferas, em diversos países, ele teria ficado assim, avesso, divulga a nota.
Sob severas privações em seu tekoha [terra sagrada] diminuto, a circulação de Ambrósio pelas extensas arenas por onde Terra Vermelha o levou teria acentuado as dissociações causadas pela invasão das terras Guarani Kaiowá, alçando Vilhalva a uma imagem difusa de si próprio.
Para o Cimi, outros indígenas que atuaram no filme também sofrem com problemas semelhantes. O texto informa que os produtores do filme, possivelmente, desconhecem o fato e muito menos anteviram os efeitos que a velocidade estonteante com que Ambrósio foi solapado provisoriamente de seu universo social causariam.
Crime O líder indígena foi morto a facadas na madrugada desta segunda-feira (2) enquanto voltava para a comunidade em que morava. Ele teria chego sangrando em sua casa, onde vivia com as três esposas. A família tentou socorrê-lo e acionou a polícia, mas Ambrósio morreu dentro do barraco.
A vítima estaria bebendo em companhia de amigos, quando o crime aconteceu. A polícia e a perícia técnica apreenderam uma faca com vestígios de sangue e dois indígenas foram levados à delegacia para prestar depoimento.
De acordo com o delegado responsável pelas investigações, Benjamin Lax, não existe no crime conotação de disputa por terras ou algo parecido. Foi uma briga entre família indígena envolvendo o uso de bebida alcoólica, explicou.
Depois de ouvir duas das esposas de Ambrósio, o delegado decidiu pedir a prisão em flagrante de Ricardo Mendes Quevedo, pai de uma delas. As mulheres são mãe e filha. O caso foi comunicado para o Poder Judiciário.
Velório e enterro Ambrósio foi enterrado por volta das 10h30 de hoje (3) em um cemitério dentro da aldeia. De acordo com o coordenador da Funai (Fundação Nacional do Índio) de Dourados, Vander Aparecido Nishijima, que participou da cerimônia fúnebre, indígenas mais antigos cantaram e tocaram um instrumento conhecido como mbaraca.
O kaiowá é um povo que tem um tradicionalismo muito forte. Acredito que eles tenham feito rezas, como uma espécie de velório, durante toda noite anterior ao enterro. O pai do cacique era um ñanderu, rezador profissional, lembrou,
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